Livrando a Fé da Matrix Ideológica

Estudo Biblico Livrando a

Fé da Matrix Ideológica Evangélica Gospel


O teólogo alemão Rodolf Bultmann afirmou que o Evangelho, para manter-se relevante ao homem moderno, teria que passar por uma desmitologização, isto é, uma desvinculação da linguagem mitológica fartamente usada na antiguidade. Sem querer entrar neste mérito, creio o que o Evangelho necessita atualmente é de uma desideologização, que consistiria em desvinculá-lo de qualquer ideologia.

A ideologia tem sido motivo de rompimento entre muitos cristãos. Recentemente, postei um artigo sobre pastores que deduraram seus colegas para o regime militar durante os dias da ditadura. Muitos foram torturados e mortos por sua suposta ligação com os comunistas. Fiquei sobremodo chocado quando um irmão em Cristo, defensor da fé, comentou em meu mural no facebook, afirmando que entregaria um colega de ministério ao regime sem qualquer remorso, mesmo sabendo o que este sofreria nas mãos dos militares. Confesso que esta possibilidade me deixou perturbado. Será que uma posição ideológica teria mais peso para nós do que nossa irmandade em Cristo? Como Jesus se comportaria nessas circunstâncias?

Teria Jesus abonado ou desabonado alguma ideologia vigente em Seus dias? Sabemos por fontes históricas, além da própria Bíblia, que naqueles dias o povo judeu estava dividido em vários partidos político-religiosos. Entres os quais destacamos os fariseus, os saduceus, os zelotes, os essênios e os publicanos. De fato, como dizia o sábio escritor de Eclesiastes, não há nada novo debaixo do céu. Esses partidos já defendiam posturas que mais tarde seriam adotadas por ideologias modernas.

Os zelotes, por exemplo, eram um movimento político que procurava incitar o povo da Judeia a rebelar-se contra Roma e a expulsar os conquistadores através da luta armada. Foram eles os responsáveis pela Primeira Guerra Judaico-Romano entre 66 e 70 d.C., que culminou com a queda de Jerusalém. Eram considerados subversivos, insurgentes, dispostos a desafiar o status quo. Não vemos nenhuma crítica direta de Jesus aos zelotes, apesar de Seu discurso pacifista ser o inverso da proposta deles. Mesmo assim, um dos apóstolos de Jesus, “Simão, o Zelote”, era membro deste partido (Lc.6:15 e At.1:13). Eu diria que sua ideologia era o equivalente à extrema esquerda de nossos dias. Imagine, Jesus seguido por um discípulo chamado ‘carinhosamente’ de “Simão, o Comuna”...rs

Os zelotes eram considerados um partido clandestino e seus membros não tinham representação no sinédrio. O mesmo se dava com os essênios. Sob vários pontos de vista, os essênios eram extremamente progressistas, apesar de seu ascetismo e de viverem em comunidades separadas dos demais. Aboliam a propriedade privada (quer mais comunista que isso?). Defendiam que as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens, podendo ser alçadas à posição de mestres. Acreditavam que a natureza, os seres humanos e todas as coisas vivas constituíam o verdadeiro Templo de Deus, posto que Ele não habita em santuários feitos por mãos de homens. Defendiam que as ofertas aceitas por Deus eram o partilhar da comida com os famintos, fossem homens ou animais. Assim como os crentes primitivos, os essênios tinham tudo em comum.  Jesus não disse uma só palavra contra este movimento. Alguns até acreditam que Jesus tenha sido influenciado por suas ideias e que João Batista fora um dos seus membros mais proeminentes.

Deixando a ala esquerda, vamos investigar um pouco a direita dos tempos de Jesus. Àquela época, grupos reacionários surgiram dentro da sociedade judaica, tentando restabelecer o seu prestígio e poder, ou pelo menos o que eles consideravam como certo segundo a Lei e tradições judaicas. Entre eles, os saduceus, considerados como "pertencentes ao partido da estirpe sacerdotal dominante". Diferiam dos fariseus por serem mais abertos às influências helênicas (gregas). Formavam um dos dois partidos aceitos no sinédrio, e como tal, representavam os interesses da classe dominante. Talvez por sua hostilidade a qualquer coisa considerada sobrenatural, não há registro nas Escrituras de saduceus seguidores de Cristo.

Já os fariseus compunham o partido mais popular dentre os que tinham assentos no sinédrio. O termo “fariseu” (prushim, heb.) significa “separado”. Todavia, sua separação não envolvia ascetismo, como os essênios, pois julgavam ser importante o ensino das Escrituras e das tradições dos pais à população. Eram muito religiosos e respeitados na comunidade como pessoas que pautavam seu comportamento na ética e na moral. Jesus, entretanto, denunciou sua hipocrisia e formalidade. Apesar dos constantes “pegas pra capar” que Jesus tinha com eles, um dos Seus mais fervorosos discípulos pertencia a este partido. Ninguém menos que Paulo, o apóstolo dos gentios.

O último grupo que gostaria de citar são os publicanos. Eram os responsáveis pela coleta de impostos para os romanos. Arqui-inimigos dos fariseus, os publicanos eram detestados pelos judeus e muitas vezes envolviam-se em corrupção cobrando das pessoas além do devido. Os Evangelhos relatam que alguns deles se converteram ao cristianismo, entre os quais Mateus, também chamado de Levi, que deixou o ofício para se tornar apóstolo, e Zaqueu (Lucas 19:1-10) que ao ser visitado por Jesus, fez questão de restituir a todos que havia defraudado. Apesar da má fama dos publicanos, Jesus utilizou-os para ilustrar algumas de Suas mais importantes parábolas, entre elas a Parábola do Fariseu e do Publicano e a Parábola da Ovelha Perdida.

Imagine se Jesus diluísse Sua mensagem em qualquer uma das ideologias vigentes em Seus dias. Como Ele poderia congregar sob o mesmo teto zelotes, fariseus e publicanos? Uns separatistas, outros inclusivistas. Uns a favor da propriedade privada, outros contra. Uns trabalhando por Roma, outros promovendo rebelião contra o império.

Em momento algum Jesus comprometeu o conteúdo de Sua mensagem com as agendas político-ideológicas do Seu tempo. Ele a manteve intacta. O que Lhe importava era a agenda do Reino de Deus. Por conta disso, salvaguardou Sua isenção profética.

Temos tanto o que aprender com o Mestre! Considero uma afronta fazer da pregação do Evangelho panfletagem ideológica, ou usar passagens isoladas das Escrituras para justificar suas preferências. Jesus não é garoto-propaganda de regime algum. Ele não é americano, nem cubano. Não é petista, nem tucano. Não é conservador, nem progressista. Não é socialista, nem neoliberal. Sua mensagem é comprometida com o idealismo, não com a ideologia, seja de esquerda, de centro ou de direita. Seu compromisso é prioritariamente com os pobres, mesmo que alguém o acuse de comunista. Porém, o mesmo Jesus que atende ao clamor de Bartimeu, o mendigo cego às margens do caminho, também atende aos anseios de Zaqueu, o publicano corrupto. Não confundam prioridade com predileção. O Cristo dos Evangelhos jamais fez acepção de pessoas. Ele é capaz de cercar-se de prostitutas em plena luz do dia e ainda atender a um figurão da sociedade na calada da noite. Ele perdoa os romanos que O crucificam, mas também demonstra importar-se com o destino da alma do ladrão crucificado ao Seu lado.

Ele não despreza homem algum, senão o arrogante, o que se acha dono da verdade, e que em seu nome despreza os que pensam diferentemente dele. Todos têm o direito de ter suas predileções ideológicas. Mas não se enganem. Não há ideologia perfeita. Portanto, não vale a pena matar ou morrer por elas. Nem é de bom tom demonizar a ideologia do outro. Neste campo não há mocinhos ou bandidos. Ambos têm telhado de vidro. Todos produziram heróis e mártires, mas também algozes e torturadores. Protegeram interesses legítimos, mas às vezes, ao custo de vidas inocentes. Quando se quer criticar o comunismo, por exemplo, aponta-se Cuba, com o seu atraso tecnológico, esquecendo-se que o mesmo se deve ao embargo econômico promovido pela a maior potência capitalista do mundo. Há santos e pecadores, anjos e demônios em ambas as trincheiras. É perda de tempo ficar contabilizando pra ver que regime matou mais, ou promoveu mais a prosperidade do seu povo. Cada regime tem seu próprio altar e sacrifício. Um sacrifica a liberdade no altar da justiça social. Outro sacrifica a justiça social no altar da liberdade. Sempre alguém sairá ganhando enquanto outros sairão perdendo. É inevitável. Então, não queiram canonizá-los, tampouco demonizá-los. São simplesmente humanos, tão falhos quanto os que os criaram.

Parafraseando Paulo, se por causa de uma ideologia se contrista teu irmão, já não andas conforme o amor. Não destruas por causa de uma ideologia aquele por quem Cristo morreu (Rm.14:15). Posso até considerar que um irmão esteja enganado quanto à sua ideologia, mas isso não me confere o direito de pôr em xeque a sua integridade e fé.

Quanto a mim, se me pedirem que escolha entre uma pílula e outra, minha resposta será: Nenhuma das duas. Obrigado. Estou fora da Matrix.

| Autor: Hermes C. Fernandes | Divulgação: estudosgospel.Com.BR |
 
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